Um grão de semente contém em si os princípios de uma dupla viagem: da raíz que se fundamenta na terra, do tronco que conquista o céu. Uma mão sobre uma folha de papel vazia procura o encontro nesses espaços em branco...

terça-feira, 12 de maio de 2009

Olhares Convergentes - 1



Aqui fica na íntegra, o artigo escrito para a publicação Olhares Convergentes comemorativa dos 500 anos da Misericórdida de Penafiel.

O artigo tem três pontos: um primeiro sobre o contexto histórico em que surgem as Misericórdias, um segundo sobre o contexto actual no seu sector de actividade (Terceiro Sector ou Economia Social..) e as suas problemáticas e um terceiro em que se perspectivam alguns dos seus desafios futuros


1.O contexto histórico
,
Vimos também ordenar
ha misericórdia sancta,
cousa tanto de louvar,
que nõ sey quem nã sespanta
de mais cedo nom se achar:
soccorre a encarcerados,
e conforta os justiçados,
a pobres da de comer,
muytos ajuda a soster,
os mortos sam soterrados.

Garcia de Resende, Crónica de D. João II

E porque, de generoso,
desprezastes os pequenos
achar-vos-e
i tanto menos
quanto mais fostes fumoso.

Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno


O percurso da assistência em Portugal remonta a tempos anteriores à origem da nacionalidade. Com efeito, antes de 1143, existiam já organizações inspiradas na Igreja Católica. Muitas foram as instituições que procuraram corporizar o preceito de caridade cristã e do espírito das obras de misericórdia. A sua distinção revela-se difícil numa época em que os cuidados de saúde eram secundarizados relativamente ao cuidados da alma e na qual se confundia a hospitalidade com a assistência: Albergarias e Hospedarias destinadas a peregrinos a quem as regras sociais prescreviam hospitalidade e redenção dos cativos, mantidas frequentemente por Ordens Religiosas; Hospitais dedicados ao tratamento de doentes mas que tinham muitas vezes dependências reservadas a peregrinos; Hospícios que davam abrigo a órfãos e crianças abandonadas e os preparavam para a vida profissional; Mercearias, onde mulheres solteiras ou viúvas podiam ficar até morrer ou onde pessoas idosas ou deficientes encontravam apoio ficando encarregues de rezar pela alma do patrono que as instituía; as Capelas, instituídas por testamento e que se destinavam a zelar pela salvação eterna da pessoa ou pessoas que as instituíam alargando os laços comunitários aos antepassados; Gafarias, lazaretos ou leprosarias que ofereciam assistência médica aos leprosos; Confrarias ou Irmandades que tinham como objectivo principal satisfazer as necessidades de culto necessárias à salvação das almas mas funcionando secundariamente como estruturas destinadas ao auxílio mútuo (ex.: ajuda a viúvas e órfãos dos confrades).

Foi neste contexto que surgiram as Misericórdias. Por um lado, elas significaram a persistência da noção medieval de caridade, expresso na formulação das catorze obras de caridade, sete espirituais[1] e sete corporais[2]. As Misericórdias continuaram, igualmente, a tradição de caridade individual dado que os seus irmãos continuavam a desenvolver relações pessoais com os beneficiários.

Por outro lado, as Misericórdias enquadraram processos de mudança generalizados ao Ocidente Europeu. O ano da fundação da Misericórdia de Lisboa – 1498[3] – é o mesmo da chegada de Vasco da Gama à Índia e resultou de um esforço conjunto de Frei Miguel Contreiras e da rainha D. Leonor, num contexto de reagrupamento das instituições de assistência, de afirmação e centralização do poder régio, de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, de um humanismo renascentista influenciado pelos Descobrimentos Portugueses e cujos expoentes mais significativos são a Utopia de Thomas More e, em Portugal, as obras de Damião de Góis e de Garcia de Resende e o humanismo de raízes populares de Gil Vicente.


[1] 1ª:ensinar os simples; 2ª: dar bom conselho a quem o pede, 3ª: castigar com caridade os que erram; 4ª:consolar os tristes desconsolados, 5ª: perdoar quem nos ofendeu; 6ª: sofrer as injúrias com paciência; 7ª: rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos.
[2] 1ª:remir os cativos e visitar os presos; 2ª: curar os enfermos; 3ª: cobrir os nus; 4ª: dar de comer aos famintos; 5ª: dar de beber a quem tem sede; 6ª: dar pousada aos peregrinos e pobres; 7ª enterrar os mortos.
[3] A expansão das Misericórdias surgiu como produto de uma vontade política tendente a dotar o reino de instituições obedecendo a uma mesma matriz comum, fornecida pelo Compromisso da Misericórdia de Lisboa. A de Penafiel nasceria em 1509.

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