Um grão de semente contém em si os princípios de uma dupla viagem: da raíz que se fundamenta na terra, do tronco que conquista o céu. Uma mão sobre uma folha de papel vazia procura o encontro nesses espaços em branco...

segunda-feira, 15 de março de 2010

.. sou de letras, não sei dividir

Pedes-me um tempo,
para balanço de vida.
Mas eu sou de letras,
não me sei dividir.
Para mim um balanço
é mesmo balançar,
balançar até dar balanço
e sair..

Pedes-me um sonho,
para fazer de chão.
Mas eu desses não tenho,
só dos de voar.

Agarras a minha mão
com a tua mão
e prendes-me a dizer
que me estás a salvar.
De quê?
De viver o perigo.
De quê?
De rasgar o peito.
Com o quê?
De morrer,
mas de que paixão?
De quê?
Se o que mata mais é não ver
o que a noite esconde
e não ter
nem sentir
o vento ardente
a soprar o coração...

Pedes o mundo
dentro das mãos fechadas
e o que cabe é pouco
mas é tudo o que tens.
Esqueces que às vezes,
quando falha o chão,
o salto é sem rede
e tens de abrir as mãos.

Pedes-me um sonho
para juntar os pedaços
mas nem tudo o que parte
se volta a colar.

E agarras a minha mão
com a tua mão e prendes-me
e dizes-me para te salvar.
De quê?
De viver o perigo.
De quê?
De rasgar o peito.
Com o quê?
De morrer,
mas de que paixão?
De quê?
Se o que mata mais é não ver
o que a noite esconde
e não ter
nem sentir
o vento ardente
a soprar o coração.


a versão musicada deste poema - nas vozes de Mafalda Veiga e Tiago Bettencort - pode ser encontrada aqui

sexta-feira, 5 de março de 2010

Calma perturbadora (ou Das impressões de 'Os Esquecidos' de Pedro Neves)


Há algo de perturbadoramente calmo naquela cena final. O fim do dia impõe-se sobre o rio Douro vendo-se ao fundo o turístico postal do conjunto Serra do Pilar – ponte Luís I.

A câmara abre horizonte e a cidade vai aparecendo. È estranho este mundo realizado por Pedro Neves. Sabe-se (saberemos?) que não fica muito longe dali…basta seguir para nascente até àquela bandeira portuguesa rasgada pelo vento. Está pois muito próximo, demasiado próximo para o esquecermos. Afinal não dista mais do que alguns metros para o alcançarmos. É vizinho das nossas casas. E com esse gesto banal de pentear o cabelo, abre-se um convite a partilharmos a sua intimidade.

É uma história de amor. Do amor em forma de memória de Zé Luís pelo seu pai … Do amor de Alexandre pelos pais apesar da tristeza de não ter dinheiro para os levar a jantar fora no dia do seu aniversário. Do Albino que conheceu Helena numa festa de S. João. Do não abandono de Candidinha por Elísio mesmo que aquela tenha problemas de saúde que o impossibilitam de se afastar muito. Do amor retratado em actos de cumplicidade: no gesto de calçar as meias à esposa e de lhe fazer o almoço. «Se não fosse eu, ela morria aí ao desmazelo». A partir desse amor em gestos – aparentemente – simples, os lembrados revelam-nos a sua intimidade. «Estou a falar verdade. Mostro o que tenho».

«È o século XXI em Portugal». Do «veneno» [droga?!] que consome os filhos. Do alcoolismo. Onde há analfabetismo. Onde os sonhos não vão muito para lá das chamas da fogueira daquela casa que tem como tecto o céu aberto. Este é um mundo onde as paredes se esboroam ao também simples gesto de passar a mão. Onde o frio tudo encolhe. Onde a chuva e o vento impõem silêncios escuros. Onde há quem chore. Um mundo a quem ninguém quer deitar a mão. «Pelo contrário, até gostam de ver a miséria». Onde só parece chegar a fé num qualquer Deus ou numa qualquer santa.

Há algo de calmamente perturbador naquela manhã que nasce sobre a cidade. Há quem sinta vaidade ao arranjar-se. Há quem se auto-nomeie «gestor de felicidade». Há quem veja coragem. Há quem não se deixe ensurdecer pelos automóveis nas vias rápidas. Há quem vá a esse mundo, com um olhar cru, para soltar gritos de atenção.

Os Esquecidos

trailer do filme:




Luísa Sequeira entrevista, para o programa Fotograma da RTP, o realizador Pedro Neves acerca do documentário "Esquecidos".