Um grão de semente contém em si os princípios de uma dupla viagem: da raíz que se fundamenta na terra, do tronco que conquista o céu. Uma mão sobre uma folha de papel vazia procura o encontro nesses espaços em branco...

sexta-feira, 5 de março de 2010

Calma perturbadora (ou Das impressões de 'Os Esquecidos' de Pedro Neves)


Há algo de perturbadoramente calmo naquela cena final. O fim do dia impõe-se sobre o rio Douro vendo-se ao fundo o turístico postal do conjunto Serra do Pilar – ponte Luís I.

A câmara abre horizonte e a cidade vai aparecendo. È estranho este mundo realizado por Pedro Neves. Sabe-se (saberemos?) que não fica muito longe dali…basta seguir para nascente até àquela bandeira portuguesa rasgada pelo vento. Está pois muito próximo, demasiado próximo para o esquecermos. Afinal não dista mais do que alguns metros para o alcançarmos. É vizinho das nossas casas. E com esse gesto banal de pentear o cabelo, abre-se um convite a partilharmos a sua intimidade.

É uma história de amor. Do amor em forma de memória de Zé Luís pelo seu pai … Do amor de Alexandre pelos pais apesar da tristeza de não ter dinheiro para os levar a jantar fora no dia do seu aniversário. Do Albino que conheceu Helena numa festa de S. João. Do não abandono de Candidinha por Elísio mesmo que aquela tenha problemas de saúde que o impossibilitam de se afastar muito. Do amor retratado em actos de cumplicidade: no gesto de calçar as meias à esposa e de lhe fazer o almoço. «Se não fosse eu, ela morria aí ao desmazelo». A partir desse amor em gestos – aparentemente – simples, os lembrados revelam-nos a sua intimidade. «Estou a falar verdade. Mostro o que tenho».

«È o século XXI em Portugal». Do «veneno» [droga?!] que consome os filhos. Do alcoolismo. Onde há analfabetismo. Onde os sonhos não vão muito para lá das chamas da fogueira daquela casa que tem como tecto o céu aberto. Este é um mundo onde as paredes se esboroam ao também simples gesto de passar a mão. Onde o frio tudo encolhe. Onde a chuva e o vento impõem silêncios escuros. Onde há quem chore. Um mundo a quem ninguém quer deitar a mão. «Pelo contrário, até gostam de ver a miséria». Onde só parece chegar a fé num qualquer Deus ou numa qualquer santa.

Há algo de calmamente perturbador naquela manhã que nasce sobre a cidade. Há quem sinta vaidade ao arranjar-se. Há quem se auto-nomeie «gestor de felicidade». Há quem veja coragem. Há quem não se deixe ensurdecer pelos automóveis nas vias rápidas. Há quem vá a esse mundo, com um olhar cru, para soltar gritos de atenção.

5 comentários:

Aquarela disse...

Parabéns Rui,


Serias um excelente jornalista!
(escritor já és!!!!!)
Depois de ler este teu texto só me apetecia ir a correr ver o filme.

Obrigada
beijinhos
claudia

cristina disse...

gostei muito. dá vontade de ir ver o filme. o problema "deste tipo" de críticas é que, por vezes, são melhores que os filmes ;-)
muitos parabéns pela (tua) estreia :-)

cristina disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
joana mc disse...

Obrigada Rui pelas tuas linda palavras sobre o amor e a vida em todos os seus formatos...
joana mc

Ana Magalhães disse...

Parabéns, gostei da tua crítica. Mas, nenhum ser é igual... Cada um vê segundo a sua prespectiva. A tua é de frente, mas não vês o que está atrás! A minha prespectiva pode ser de lado, aí já não vejo da mesma forma que tu.
Ainda bem que assim é, caso contrário, não haveria assunto para comentários.
Continua que vais num bom caminho!!!