Na verdade, não lhes sei o nome e por isso chamo-lhes assim:
os 726. Chamo-lhes assim porque temos isso em comum: de manhã, todos apanhamos
o autocarro 726 em Lisboa, eu no percurso Laranjeiras – Av. Duque d’ Ávila.
O ‘Sete’ é o mais discreto de todos. Aliás, só dei conta
dele numa viagem em que falava para alguém atrás de mim sobre um qualquer
assunto de trabalho. Percebi-lhe um rosto envelhecido contrariando
aquilo que penso ser a esperança de vida para uma pessoa com Síndrome de Down.
Pergunto-me se ainda terá cuidador(es), se é independente…
Minto. Sei o nome do ‘Seis’. Chama-se Rui como eu.
Posiciona-se sempre na frente do autocarro, ao lado do ou da motorista. Fala
alto sobre as coisas nenhumas do quotidiano e foi assim que lhe ouvi o nome.
Interrogo-me se o interesse dos motoristas é genuíno, se é envolto em
condescendência ou se é uma mistura dos dois.
A ‘Dois’ é claramente a estrela deste diário. É uma pequena
empertigada: sempre que se senta as suas pernas ficam a balançar no resto do ar
que lhe sobra até ao chão. Mas nunca perde a postura altiva!! Tem uma
obsessão pelo assento do primeiro banco do lado direito do corredor da parte de
trás do autocarro. É notório o seu desconforto e incómodo quando esse lugar
está ocupado. E quando, no momento de entradas e saídas, o lugar vaga, é vê-la partir,
sempre com a sua altivez não decomposta, à conquista!
Certa vez, o motorista, devido ao muito trânsito, facilitou
a saída dos passageiros parando o autocarro a uns 2 metros da paragem. Pois
ela, obrigou-o a parar novamente – no sítio certo! – para poder sair. Imagino
que alguém a instruiu «Sentas-te aqui», «Sais acolá» e ela agora não condescende
em nada menos do que isso. Houve alguns (poucos) comentários de desagrado, mas
eu fiquei-me a rir por dentro. Não sei onde trabalha, ou mesmo se trabalha, mas
imagino que essa obsessão a torna uma excelente profissional daquelas que tem
como critério de exigência nada menos do que a perfeição.
Somos todos pessoas comuns, desconhecidos uns dos outros,
que por mero acaso apanhamos a mesma carreira de autocarro e que por isso nos encontramos, às vezes. Volto a mentir. Eu
sou comum. O ‘Sete’, o ‘Seis’ e a ‘Dois’ são extraordinários. Só pessoas
extraordinárias nos deixam um tão bom sentimento!
(Sigo à distância – apenas física – o caminho do Miki e da Joana, de quem me orgulho chamar amigos. Este texto é–lhes dedicado pelo exemplo de família integradora que constroem todos os dias)
Foto tirada hoje de manhã do lugar da 'Dois' vendo-se ao fundo o 'Seis'