Um grão de semente contém em si os princípios de uma dupla viagem: da raíz que se fundamenta na terra, do tronco que conquista o céu. Uma mão sobre uma folha de papel vazia procura o encontro nesses espaços em branco...

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Os 726!


Na verdade, não lhes sei o nome e por isso chamo-lhes assim: os 726. Chamo-lhes assim porque temos isso em comum: de manhã, todos apanhamos o autocarro 726 em Lisboa, eu no percurso Laranjeiras – Av. Duque d’ Ávila.

O ‘Sete’ é o mais discreto de todos. Aliás, só dei conta dele numa viagem em que falava para alguém atrás de mim sobre um qualquer assunto de trabalho. Percebi-lhe um rosto envelhecido contrariando aquilo que penso ser a esperança de vida para uma pessoa com Síndrome de Down. Pergunto-me se ainda terá cuidador(es), se é independente…

Minto. Sei o nome do ‘Seis’. Chama-se Rui como eu. Posiciona-se sempre na frente do autocarro, ao lado do ou da motorista. Fala alto sobre as coisas nenhumas do quotidiano e foi assim que lhe ouvi o nome. Interrogo-me se o interesse dos motoristas é genuíno, se é envolto em condescendência ou se é uma mistura dos dois.

A ‘Dois’ é claramente a estrela deste diário. É uma pequena empertigada: sempre que se senta as suas pernas ficam a balançar no resto do ar que lhe sobra até ao chão. Mas nunca perde a postura altiva!! Tem uma obsessão pelo assento do primeiro banco do lado direito do corredor da parte de trás do autocarro. É notório o seu desconforto e incómodo quando esse lugar está ocupado. E quando, no momento de entradas e saídas, o lugar vaga, é vê-la partir, sempre com a sua altivez não decomposta, à conquista! 

Certa vez, o motorista, devido ao muito trânsito, facilitou a saída dos passageiros parando o autocarro a uns 2 metros da paragem. Pois ela, obrigou-o a parar novamente – no sítio certo! – para poder sair. Imagino que alguém a instruiu «Sentas-te aqui», «Sais acolá» e ela agora não condescende em nada menos do que isso. Houve alguns (poucos) comentários de desagrado, mas eu fiquei-me a rir por dentro. Não sei onde trabalha, ou mesmo se trabalha, mas imagino que essa obsessão a torna uma excelente profissional daquelas que tem como critério de exigência nada menos do que a perfeição.

Somos todos pessoas comuns, desconhecidos uns dos outros, que por mero acaso apanhamos a mesma carreira de autocarro e que por isso nos encontramos, às vezes. Volto a mentir. Eu sou comum. O ‘Sete’, o ‘Seis’ e a ‘Dois’ são extraordinários. Só pessoas extraordinárias nos deixam um tão bom sentimento!

(Sigo à distância – apenas física – o caminho do Miki e da Joana, de quem me orgulho chamar amigos. Este texto é–lhes dedicado pelo exemplo de família integradora que constroem todos os dias)


Foto tirada hoje de manhã do lugar da 'Dois' vendo-se ao fundo o 'Seis'


terça-feira, 4 de abril de 2017

12 de Maio de 1982

Na televisão - ainda a preto e branco – a imagem de uma escada a encostar ao avião por onde momentos depois desceria João Paulo II para a sua primeira visita a Portugal. Uma voz mandava-me despachar para não nos atrasarmos. Porquê? Porque a nossa alegria estava centrada noutro momento, noutro local: no Hospital de Leiria, no nascimento do Primo João. Era preciso partir para ir vê-lo.

Por termos quase 10 anos de diferença, tive a GRAÇA de poder acompanhá-lo no seu crescimento: o menino de cabelos encaracolados que posava no Jardim de Infância para uma fotografia imortalizada na cómoda da avó Inácia; o menino curioso que me pedia para lhe ler os almanaques da Disney e que, inventava ele próprio as histórias quando eu não estava (mesmo não sabendo ler); a criança que nos entusiasmava com a sua consola e os jogos do Super Mário; a criança que fazia brincadeiras coreografadas com irmã Mariana e a prima Tânia; o rapazinho que se empoleirava comigo e com outros primos numa árvore no Valdeira; o rapazinho com quem não partilhava o gosto pelos Transformers e pelas Tartarugas Ninja mas que, mais tarde, viria a ser fã – como eu – dos Ficheiros Secretos.

Depois o João cresceu. O João cresceu em SABEDORIA. Procurei transmitir-lhe os meus poucos conhecimentos de solfejo. Era tão ávido por aprender que até queria que a mãe Bélita  - que é contabilista - lhe desse explicações de música. O João agarrou nisso tudo e descobriu-se num amor enorme à Filarmónica do Soutocico.

Depois o João cresceu mais um pouco. O João cresceu em ESTATURA: o João já ia ao cinema comigo, o João já ia concertos comigo, o João já saía comigo à noite para ir beber um copo a um qualquer bar em Leiria (Primos, lembram-se de irmos jogar Genga?).  O João já chegava tarde a casa e por isso o João já ouvia raspanetes dos pais. Um pouco mais a seguir e o João já estava na Universidade. E o João já fumava e eu já lhe cravava cigarros. Enviei-lhe uma t-shirt da ilha do Pico quando morava Açores. E arranjava-lhe copos de cerveja para a sua colecção. De permeio, ainda fomos juntos, algumas vezes, à Festa do Avante e arranjámos tempo para irmos aprender a dançar mazurga no Festival Andanças.

O João cresce distraído: esquece-se do casaco nos autocarros quando regressa da escola e obriga o pai Lelo a pegar no carro e ir atrás da carreira para recuperar os seus esquecimentos. Deve ter sido esse ar que, anos mais tarde, os meliantes em Lisboa se aproveitaram para o assaltarem algumas vezes. O João tem esse ar despreocupadamente interessado nas coisas, de quem passa pela vida centrado naquilo que é verdadeiramente importante.

Quando escrevi uma história editada em livro, o João entusiasmou-se comigo no Porto. Mais tarde seria eu a entusiasmar-me com ele e com o seu casamento com a Andreia e esse amor fecundo concretizado na Matilde. Em Lisboa dizia-lhe: «Caramba João, já és pai!»

Ainda há pouco, falámos de quanto humor a vida pode ter: eu a mudar-me para Lisboa por motivos profissionais, ele a regressar de Lisboa a Leiria com esse sentido responsável de quem queria dar mais qualidade de vida à sua família.

“The King and Me” de Benny Goodman é a música que me foi apresentada pelo João quando lhe pedi que me arranjasse um fundo musical para o conto infantil «João e a galinha». Escrevi mas a história é inteiramente dele: quem mais que o João para se lembrar de curar as enfermidades da galinha da Tia Lúcia através de solos de clarinete tocados a partir do terraço de casa dos seus pais? "The King and Me" é a música que tenho no telemóvel como toque de chamada, desde então. Agora será também aí que estarás sempre comigo, primo João!

No Domingo, 2 de Abril de 2017, deram-me a conhecer um lugar tenebroso, frio, terrível, escuro, e muito, muito doloroso. Agora sei que tenho alma. Agora sei que tenho alma porque me a arrancaram. A dor é tão profunda que parece vencer tudo: os abraços em que nos apertamos, as mãos que nos damos, os gritos que calamos, os silêncios em que explodimos.Mas houve um momento, um momento tão breve quanto a eternidade, tão pequenino quanto o infinito em que o João me confortou estendendo a sua mão sobre a minha face. A dor nunca passará. Mas o João falou-me que um dia esse lugar terá uma luz tão brilhante e tão intensa que nos poderemos voltar a unir para voltar a celebrar a alegria da vida.


(a foto foi tirada em Setembro de 2004 num jantar de aniversário / inauguração da minha casa no Porto)